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domingo, 11 de outubro de 2009

PERTUBAÇÃO DO SOSSEGO, ATÉ QUANDO



Podemos definir a poluição sonora como a emissão de quaisquer ruídos pelas atividades humanas, sejam elas comerciais, industriais, sociais ou recreativas, que ultrapassam determinados valores, afrontando o conforto e o bem-estar da população.

Pouco lembrada até mesmo nas mais acaloradas e “efeito estufadas” discussões ambientais, esta estrepitosa tipologia de degradação ambiental, nos grandes centros urbanos, tem se mostrado perversa para com a inexorável necessidade de sossego dos cidadãos. Intimamente relacionada com a qualidade de vida das comunidades, o sério problema dos excessivos e desafinados ruídos urbanos ainda repousa debaixo do já esgarçado tapete socioambiental, como uma sujeira oculta, porém, não menos prejudicial.
O ser humano contemporâneo, ao se isolar completamente do ambiente natural, esqueceu-se da sua casa outrora tranqüila e acolhedora. Como já dizia o grande escritor e adepto da Ecologia Profunda, Carlos Aveline, “O ruído ameaça tanto o silêncio como a musicalidade presentes na natureza. As cidades do Primeiro Mundo já controlam com rigor crescente as fontes de poluição sonora. Seus carros e máquinas silenciosas são um exemplo entre muitos. No Brasil, porém, o ruído e a surdez coletiva ainda crescem mais rápido do que os programas de educação e controle da poluição sonora” .
Este notável defensor da alma de Gaia, ainda afirma que o ruído excessivo é, na verdade, uma espécie de exteriorização forçada da consciência, que pode ser buscada artificialmente para fugir da ansiedade interior. É o caso de músicas barulhentas e outras formas de ruídos físicos presentes no mundo moderno. Mas o barulho pode também ser imposto ao homem de fora para dentro, transformando-o em vítima de uma forma de contaminação ambiental. Segundo Aveline, todo ser humano precisa do silêncio para viver bem.
Derrubando por terra o antropocentrismo, não só o ser humano precisa de silêncio, mas também todas as outras espécies vivas encontradas na natureza, mas as tentativas de obtê-lo têm sido inócuas em meio ao caos da civilização atual. Biólogos e zoólogos garantem que há uma clara dificuldade de adaptação da fauna, por exemplo, em parques municipais próximos a ambientes ruidosos.
Habitantes de zonas urbanas mais populosas percebem o quanto tem sido difícil descansar com real tranqüilidade, no suposto conforto do lar, após um exaustivo expediente de trabalho. As fontes de ruídos são incontáveis: vão desde estabelecimentos industriais, comerciais, recreativos e sociais que cercam nossas residências, além de aeroportos remendados no tecido urbano, até os incessantes ruídos do trânsito que também se subdividem em buzinas desatinadas, escapamentos fora dos padrões de ruído permitidos (na maioria das vezes, propositalmente) e som alto, de pós-adolescentes incandescentes. O correto e respeitado zoneamento urbano é, dentre outros, um requisito-chave a ser considerado no cerne deste problema pela administração pública.

De acordo com o Professor de Neurofisiologia da UFMG, Membro Pleno do Instituto de Pesquisa Sobre o Cérebro (UNESCO/Paris), Sr. Fernando Pimentel-Souza, “o ruído é um dos sincronizadores ou perturbadores do ritmo do sono mais importantes. Distúrbios do ritmo do sono produzem sérios efeitos na saúde mental [...] O sono de todos os indivíduos é sensível ao ruído, havendo perdas proporcionais às perturbações nas suas nobres funções”. O pesquisador ainda salienta que “ um dos indicadores da má qualidade de vida ambiental nas nossas cidades no Brasil foi revelado por pesquisa de BRAZ (1988), na cidade de São Paulo, onde 14% das pessoas atribuem suas insônias a fatores externos, das quais 9,5% exclusivamente ao ruído”. Além disso, “ um pulso de 90 dB por 20 segundos desenvolve 80 segundos de constrição periférica dos vasos sangüíneos”.
O que se percebe é que no mundo moderno não existe uma preocupação pelo sossego dos convalescentes em hospitais, idosos em suas residências e crianças que precisam de um sono tranqüilizador para se desenvolverem em meio a turbulenta crise ambiental contemporânea. Numa sociedade em que a palavra de ordem é reduzir o estresse, notadamente crescente em função das enfermidades sociais arraigadas, o desrespeito pela paz alheia parece não ter a mínima importância. O silêncio é, portanto, desprezado, refletindo o frenesi social ora institucionalizado.

Em Curitiba, a título de exemplo, muitos bairros já enfrentam este tipo de degradação ambiental, inicialmente com conseqüências muitas vezes tácitas, tais como um invisível câncer, mas que oneram sobremaneira a qualidade de vida das pessoas ao longo do tempo. A qualquer hora do dia, mas, principalmente à noite, a capital paranaense, outrora já considerada a “Capital Ecológica”, revela sua verdadeira face, contrariando a sua própria Lei Municipal 10.625/02 que discorre sobre ruídos urbanos, proteção do bem-estar e do sossego público. Em seu Art. 1º, o diploma já contempla o esperado pelos cidadãos de bem: “ É proibido perturbar o sossego e o bem-estar público com sons, ruídos e vibrações que causem incômodo de qualquer natureza... ” Evidente é, portanto, o desconhecimento desta lei por parte dos munícipes, como uma receita de seus direitos e deveres, lei que prima, é claro, pelo seu próprio conforto.

Como um exemplo corriqueiro, pode-se citar a invenção das lojas de conveniências anexas aos postos de abastecimento, grande parte encontrada em regiões residenciais. Apesar da facilidade e já consagrada necessidade desses pequenos mercados, estes estabelecimentos nem sempre fazem jus ao nome. É evidente a perturbação de toda a comunidade nestes locais, sendo mais facilmente reconhecidos como lojas de “inconveniências”. Jovens alcoolizados gritando de madrugada, ruídos de motores, buzinas, pneus no asfalto, freadas, discussões e brigas, são um retrato fiel do que vem acontecendo em Curitiba e, sem dúvida, também em outras cidades. E com isso, é clara a diminuição da qualidade de vida observada nessas regiões. As conseqüências não ficam aquém daquelas causadas por outros problemas ambientais. São conseqüências econômicas, como a desvalorização de imóveis residenciais próximos a locais de grande perturbação sonora, com perdas expressivas para seus proprietários; conseqüências físicas, biológicas e psicológicas para aqueles que tentam se restabelecer num sono infrutífero ou, sobretudo, convalescer-se de doenças, quando a necessidade de descanso deve ser redobrada.
A poluição sonora esbarra, em quase sua totalidade, numa questão fundamental: a educação. E não só aquela educação construída pela família, mas aquela que hoje chamamos de educação ambiental. Muitos indivíduos ainda desprezam a “doença” contemporânea do barulho excessivo, uma questão que vem se agravando ano após ano. Aliada à educação, é claro, a falta de uma fiscalização intensa em áreas de movimentação crítica, onde há hospitais e estabelecimentos de entretenimento ou comércio 24 horas, corrobora a persistência da situação e, também, o seu agravamento. A passividade do brasileiro com relação à defesa de seus direitos só produz mais injustiça para com toda a coletividade. E o que é pior, a impunidade garante que seus deveres não sejam cumpridos.
A poluição sonora deve obrigatoriamente fazer parte da pasta de gerenciamento ambiental dos municípios e, sobretudo, deve ser levada em consideração no estabelecimento de leis que primam pelo sossego e bem-estar da comunidade. Essas leis, pelo menos nas grandes metrópoles, já existem. E como todo bom e velho problema nacional, inexiste a efetiva punição dos infratores: as leis não se fazem cumprir. Infelizmente, uma questão histórica e cultural.
Um dos grandes problemas que dificultam a fiscalização e a conseqüente repressão é que a poluição sonora não gera resíduos ou danos aparentes e, muitas vezes, apesar de ser suficientemente capaz de perturbar o descanso ou o sossego da comunidade na qual ela ocorre, não perdura durante o tempo entre uma eventual denúncia e a ação repressiva da administração pública. Sendo assim, é quase impossível flagrá-la quando não há uma constante monitoração pelas autoridades competentes, desprestigiando qualquer ação denunciatória por parte daquele que se sente prejudicado.



A Resolução CONAMA 001/90 que “ dispõe sobre a emissão de ruídos, em decorrência de quaisquer atividades industriais, comerciais, sociais ou recreativas, determinando padrões, critérios e diretrizes ", simples e clara, é uma bem-vinda regulamentação da poluição sonora, remetendo a NBR 10.151, da Associação Brasileira de Normas Técnicas, a competência de estabelecer os limites máximos de ruídos. Os incisos I e II da referida Resolução prescrevem:

“I - A emissão de ruídos, em decorrência de quaisquer atividades industriais, comerciais, sociais ou recreativas, inclusive as de propaganda política, obedecerá, no interesse da saúde, do sossego público, aos padrões, critérios e diretrizes estabelecidos nesta Resolução.

II - São prejudiciais à saúde e ao sossego público, para os fins do item anterior os ruídos com níveis superiores aos considerados aceitáveis pela norma NBR 10.151 - Avaliação do Ruído em Áreas Habitadas visando o conforto da comunidade, da Associação Brasileira de Normas Técnicas – ABNT”.

Conforme o inciso IV da mesma Resolução, a regulamentação da emissão de ruídos produzidos por veículos automotores é delegada ao CONTRAN (Conselho Nacional de Trânsito) como, por exemplo, a Resolução CONTRAN 204/2006, dentre outras.
Mas o que se vê é o total desprezo das regulamentações e, logicamente, da Legislação Ambiental. A falta de cidadania, tanto daqueles que infringem as normas quanto daqueles que não exigem seus direitos, somada à corrente impunidade, função da precária fiscalização em nosso país, só intensifica o problema da poluição sonora. Enquanto isso, a degradação da qualidade de vida da população se torna mais evidente e a sociedade, como um todo, perde ainda mais o seu direito a uma existência sadia.

A reversão deste quadro deve obrigatoriamente passar pelo renascimento da cidadania, através de políticas públicas que visem prioritariamente a “educação cidadã” como requisito fundamental para que os indivíduos passem a respeitar todo e qualquer diploma legal conferido pela nossa louvável coleção de leis.

A Sociedade Civil deve se mobilizar, denunciando ostensivamente o desrespeito contra a ordem e o sossego públicos e, ademais, cobrando de forma bastante efetiva que seus direitos sejam resguardados por uma fiscalização constante, competente e punitiva, seja nas esferas municipais, estaduais ou federal. Comunidades que se sintam lesadas podem e devem reivindicar do Estado condições mínimas para que o sossego, principalmente no horário noturno, quando nossas condições físicas, biológicas e psicológicas se regeneram, seja garantido.
Organizações não-governamentais especializadas na defesa dos direitos dos cidadãos em relação à poluição sonora devem buscar o registro de infratores e suas infrações, valendo-se de seus direitos enquanto instituições de defesa dos interesses coletivos. Essas ONGs devem, portanto, encaminhar possíveis denúncias e soluções junto às autoridades competentes e efetivamente cobrar delas a resolução deste grande problema enfrentado pelas metrópoles brasileiras.


Sobre o autor:

* Giuliano Moretti é engenheiro químico, pós-graduado (MBA) em Sistemas de Gestão Ambiental, mestrando em Gestão Ambiental no UnicenP, perito e assistente ambiental judicial, auditor e consultor da Preserva Ambiental Consultoria - www.preservaambiental.com.br