Artigo desenvolvido durante a XV Jornada Formativa de Direitos Humanos, realizada na FABEC/RJ, de 30/05/2011 a 03/06/2011
1. INTRODUÇÃO
Historicamente o policial tem sido usado como instrumento da garantia e manutenção do poder e dos privilégios nas mãos da elite. Assim como o senhor de engenho utilizava o capitão do mato para submeter seus escravos, as elites utilizam o policial como ferramenta para submeter a plebe. Isso acontece ainda hoje em países capitalistas e socialistas, desenvolvidos e subdesenvolvidos.
Mas o policial não é o repressor, mas apenas uma ferramenta, e como tal, pode ser descartada ou substituída quando envelhece ou perde sua utilidade. Às vezes, por mau uso ou por defeito, a ferramenta torna-se inconveniente e deve ser destruída.
No caso do Brasil, a Polícia foi trazida de Portugal por D. João VI, e implantada sob o nome de Intendência Geral de Polícia, com atribuição para enfrentar problemas de moradia, desabastecimento de água e alimentos, e ainda para recolher de impostos, reprimir o contrabando e outros crimes, controlar de presos e combater idéias liberais que, com a abertura dos portos, poderiam ameaçar os interesses da coroa. Assim é que a “Polícia Joanina” fazia as vezes, simultaneamente, de Prefeitura, Receita Federal, Polícia e, sobretudo, Guarda Real.
No contexto atual, a denominada “constituição cidadã” consagrou, em seu artigo 144, o controle político das instituições policiais, mantendo suas características de “Guarda Real”. Utilizado pela elite como ferramenta para reprimir sua própria classe sócio-econômica mas sem gozar dos privilégios dessa elite, o policial fica isolado em uma “zona de limbo”: desprestigiado por seus pares e humilhado pela elite, acaba por constituir um verdadeiro “grupo vulnerável” que, ao contrário de outros (idosos, mulheres, GLBT, negros, etc) não contam com qualquer organização que efetivamente se proponha a defender seus direitos.
O objetivo do presente trabalho é identificar as violações aos direitos daqueles profissionais que devem, justamente, garantir esses direitos aos cidadãos mas que, paradoxalmente, não encontram quem efetivamente lhes defenda esses mesmos direitos como cidadãos. Os problemas levantados foram identificados, majoritariamente, com base em depoimentos de alunos das diferentes instituições de segurança pública do estado do Rio de Janeiro, no curso “Saúde ou Doença – de qual lado você está?”, promovido pela SENASP e do qual o autor é tutor.
2. DESENVOLVIMENTO
Para que a elite pudesse continuar a dispor das instituições policiais e de seus agentes como uma “ferramenta” destinada a garantir seus privilégios em detrimento das classes menos favorecidas, seria preciso:
• Escolher os policiais dentre as pessoas do povo, para que possam ser facilmente descartados;
• Prover baixa remuneração, para que esses profissionais possam, com mais facilidade, ser comprados quando ameaçarem atuar contra os integrantes das elites;
• Submeter os policiais e as instituições a uma forte ingerência, tanto no âmbito interno quanto externo, para os casos em que seus integrantes se recusarem a dobrar-se diante do poder econômico.
2.1 - Remuneração
A questão salarial é ainda muito mais grave do que se veicula. A remuneração percebida pelo policial – reconhecidamente defasada – é composta, em sua grande maioria, de adicionais e gratificações que se perdem quando o policial, doente ou ferido, se vê obrigado a afastar-se do trabalho.
O percentual dos vencimentos do policial que é composto por gratificações sofre grande variação entre as instituições e dentro de uma própria instituição, criando e acentuando distorções salariais. Em geral as gratificações representam mais de 70% dos vencimentos de um policial. Essas gratificações são retiradas do policial por motivo de seu afastamento (licenças, aposentadorias, etc).
Dentro de uma mesma instituição, podemos observar grandes variações em função da unidade onde o policial é lotado. Como as remoções são comuns e não precisam ser fundamentadas, o policial acaba se tornando “refém” de sua chefia imediata. Se quiser gozar férias ou reclamar alguma arbitrariedade poderá sofrer a denominada “punição geográfica”, sendo deslocado para outra unidade. Nesse contexto pode ver reduzidos seus vencimentos e ainda ter que arcar com novos custos de deslocamentos.
2.2 - Saúde
2.2.1 - Saúde Física:
Os policiais são submetidos a diferentes escalas de trabalho, sendo a 24x72 (horas), a mais comum. Nas delegacias de Polícia Civil e nas unidades de Polícia Militar, o efetivo muitas vezes é insuficiente para atender a demanda, gerando sobrecarga. O policial é ainda vítima de assédio, tanto por parte dos superiores, como por parte da própria população, que não compreende o seu serviço e limitações. O plantão torna-se muito desgastante e o dia subseqüente parece pouco para o policial reaver suas forças. Após passar um dia inteiro entre torpor e cochilos sobressaltados, o policial tenta, no segundo dia, retomar o que sobrou de seus laços familiares e sociais. O tempo é, em geral, insuficiente para dar-lhes a atenção devida. No terceiro e último dia, o policial já sofre com a tensão referente à aproximação de mais um plantão difícil e isso prejudica e por vezes até inviabiliza o seu descanso. Esse fenômeno é ironicamente chamado de TPP – Tensão Pré Plantão. O segundo dia de folga, que na prática é o único, muitas vezes é utilizado em atividades de complementação de renda, na tentativa de suprir necessidades não atendidas por seus vencimentos. Nessa dinâmica, o policial torna-se sedentário, não dispondo de tempo e muitas vezes nem de dinheiro para o lazer e atividades físicas.
No ambiente de trabalho, o policial é submetido a um ritmo cada vez mais intenso de trabalho dispondo, para isso, de mobília e equipamentos que muitas vezes não oferecem ergonomia. Não por acaso são freqüentes os casos de LER (Lesões por esforços repetitivos) e problemas de coluna. Como policial trabalha com as limitações humanas, sofre um grande nível de estresse
Em alguns locais o policial ainda é submetido a um ambiente insalubre. Existem delegacias onde o IML ainda é um de seus anexos, em outras, sequer existe banheiro disponível. Alguns policiais são submetidos ainda a agentes como poeira, mofo, limo, etc., que podem determinar infecções e graves problemas respiratórios, e, eventualmente, levar o policial à invalidez e até à morte.
2.2.2 - Saúde Emocional:
Um aspecto que normalmente provoca grave sofrimento ao policial é o rompimento de laços familiares e sociais. Esse rompimento é provocado, basicamente, por três fatores:
a) A discriminação social contra a classe policial, o que acaba determinando o isolamento dos policiais que, surpreendentemente, acabam por constituir um verdadeiro grupo vulnerável;
b) O esgotamento físico e mental que impede que o policial participe, em seus dias de folga, das atividades de lazer junto aos familiares ou amigos. Muitas vezes os familiares saem para passear enquanto o policial fica em casa dormindo, recuperando suas forças para o próximo plantão.
c) A instabilidade provocada pelas constantes remoções e mudanças na rotina de trabalho que, inevitavelmente, refletem negativamente na vida pessoal e familiar.
Outro aspecto é a perda de afetividade em função do trabalho. Todo trabalho demanda afetividade, que é o esforço físico, psíquico e emocional gasto pelo trabalhador a fim de alcançar um resultado. Nesse sentido, o salário deve se constituir uma compensação pela afetividade empenhada. Sendo o salário insuficiente, o trabalhador entra em sofrimento. O sofrimento é agravado no caso das escalas extras: Ora, o trabalho obrigatório não remunerado, outra natureza jurídica não tem senão a de trabalho escravo.
Um aluno do curso “Saúde ou Doença, de qual lado você está?” fez o seguinte relato, referindo-se às situações estressantes que o policial enfrenta dentro e fora de seu trabalho e as conseqüências desse estresse na sua saúde:
“convivemos com vários tipos de situações, onde somos pressionados por superiores que exigem muito e não oferece nenhum meio de trabalho melhor. temos os problemas de casa, as dividas e o pequeno salário, onde muitas vezes temos que perder nossa folga trabalhando em serviço extra, nos afastando cada vez mais de nossa casa, por este motivo existe tanto divórcio no meio da segurança publica. e elevando assim o estresse ao máximo, vindo a causar as famosas doenças do coração, pressão ETC.”
2.2.3 - Saúde Psicológica:
Frustrado em suas expectativas, afastado de seus entes queridos, vendo negados seus direitos trabalhistas como férias, horas extras, etc, muitos policiais sofrem com doenças como depressão, alcoolismo, dependência química, etc.
Trabalhando em sofrimento físico, emocional e psicológico, aumentam as chances de erro na atividade policial, provocando tragédias e punições desnecessárias.
No curso “Saúde ou Doença: de qual lado você está?”, um dos fóruns disponibilizados discutia sobre as doenças mais observadas. As participações foram muito parecidas nas cinco turmas. As doenças de ordem psicológica mais observadas foram: Estresse, Alcoolismo e Depressão. Em seguida, com um número significativo de referências, aparecem doenças como: Transtorno bi-polar, síndrome de Burn-Out e dependência química.
Na síndrome de Burn-Out, o profissional é cobrado acima de suas possibilidades e dos recursos que dispõe. Inicialmente, usa o próprio estresse como motivação e trabalha ainda mais, até que, exausto e sem perceber um resultado efetivo de seu esforço, entra em colapso e passa a agir com indiferença e insensibilidade.
2.3 - Assédio Moral
O contexto político atual cobra uma postura garantista, democrática e respeitosa no tratamento do cidadão pelo policial, e nem poderia ser de outra forma. Cobradas pela sociedade e pela imprensa, as instituições cobram de seus agentes a polidez no trato com os cidadãos, sejam inocentes, suspeitos ou criminosos declarados.
Paradoxalmente, esse respeito e dignidade que se exige, não são oferecidos ao policial. Em seu local de trabalho, o policial muitas vezes é submetido a tratamento desrespeitoso por parte do cidadão e dos superiores. Sofre com ofensas, muitas vezes em presença de outras pessoas, sendo humilhado publicamente.
Um aspecto desse assédio pode ser observado quando a administração aumenta a cobrança ao profissional ao mesmo tempo em que diminui os recursos que lhe são oferecidos. O não cumprimento das exigências determinará punições, o profissional sabe disso, mas, ainda assim, é sempre lembrado por sua chefia. Essa “lembrança” toma ares de ameaça e muitas vezes é proferida em público, constituindo-se também em humilhação.
Em geral o policial responde à sobrecarga de trabalho e à ameaça de punição em caso de fracasso trabalhando mais. Esse esforço adicional não é reconhecido, nem implícita nem explicitamente pela Administração, pelo contrário, esta entende que essa é a capacidade laborativa normal do profissional e que antes ele estava “fazendo corpo mole”.
Outro aspecto do assédio moral é a sumária negação de direitos. O policial raramente consegue gozar suas férias ou licenças. Geralmente a Administração justifica a negação do direito como “imperiosa necessidade do serviço público em face da falta de servidores”. Ora, essa “imperiosa necessidade”, se de fato existe, se deve tão somente à má gestão e o trabalhador não pode, de forma alguma, arcar com os custos de uma gestão ineficiente.
2.4 - Insegurança
2.4.1 - Insegurança Física:
O risco à integridade física e mesmo à vida é inerente à atividade policial. Todavia, muito diferente do que se concebe na opinião pública, costuma ser a menor das preocupações do policial. O policial em geral assimila bem o risco que sua condição funcional representa a si e à sua família e procura, dentro de suas possibilidades, adotar medidas para minimizar esse risco. Essas medidas são limitadas pelo baixo poder aquisitivo que seus vencimentos lhe proporcionam.
2.4.2 - Insegurança Jurídica:
O policial tem frações de segundo para decidir sobre o direito de terceiros, no local do fato e no calor dos acontecimentos. Meses ou até anos depois, sua ação será analisada e julgada com toda a calma e ponderação por juízes e corregedores que, em geral, já têm uma visão negativa pré-concebida da atuação policial. Assim é que, a cada ação, o policial é aterrorizado pelo medo da punição, seja em função daquela ação ser considerada abusiva, seja em função de ser considerada prevaricação.
2.4.3 - Insegurança Financeira:
O policial pode ser removido a qualquer tempo e isso, como vimos, refletirá nos seus vencimentos. Em caso de licença ou outro afastamento, também sofrerá com a perda das gratificações. O policial não tem como garantir que conseguirá cumprir seus compromissos financeiros, como aluguel, financiamentos, escola, etc.
Em decorrência disso, o policial geralmente sofre com transporte, moradia e assistência médica inadequada. Segregado pela elite que o emprega, acaba convivendo com os seus pares, aqueles a que se dispõe a oprimir e que lhe odeiam. Aqui a insegurança financeira leva, por via transversa, à insegurança física.
3. CONCLUSÃO
O policial sofre contínuas e diversas agressões, em que pese o estigma de opressão atribuído à classe. Espremido entre a elite, que lhe nega reconhecimento e os mais básicos direitos trabalhistas e a sociedade que deve oprimir para garantir privilégios daquela elite, o policial vive em uma “zona nebulosa”, desamparado pela “nobreza” e rejeitado pela “plebe”, sua classe. Sua condição se assemelha, como disse na Introdução, à do capitão do mato: Trabalhava para o senhor do engenho oprimindo o escravos, sem se dar conta que também é um deles (escravos). Ignorado pelo primeiro e odiado pelos segundos, o capitão do mato fica isolado sem ter quem lhe defenda.
O policial, nosso capitão do mato moderno, constitui, por paradoxal que possa parecer, verdadeiro grupo vulnerável: Mais do que negros, idosos, homossexuais, deficientes, etc, sofre discriminação de todos os segmentos da sociedade, seus próprios pares, e, diferentemente daqueles grupos, não tem o policial, nenhuma instituição ou organização que o defenda efetivamente.
O primeiro passo para começar a reverter a situação descrita acima, consiste na concepção, pelo policial, de sua condição de “cidadão qualificado pelo serviço”, integrante e representante da sociedade. Esse entendimento permitirá ao policial atuar com cidadania, legitimando-o a exigir, da população e de suas próprias instituições, o reconhecimento dessa condição. O policial deve, recusar veementemente o papel de “ferramenta da opressão” que lhe é oferecido pela elite, outrossim, deve reconhecer-se como parte integrante da sociedade Deve, como qualquer trabalhador, exigir seus direitos, melhores condições de trabalho e uma remuneração mais digna, capaz de compensar a afetividade perdida.
4. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BARALDI, Tereza Cristina Albieri; SOUSA, João Alberto Maciel de; SANTOS, Lídia Cecília dos. Apostila do Curso Saúde ou Doença: de qual lado você está? SENASP/MJ, 2009.
BRETAS, Marcos Luiz. Duzentos anos de polícia no Brasil. Disponível em: . Acesso em 01.Jun.2011.
GOMES, Cláudio Pinheiro. Policial refém: drama e agonia de um salário vil. Disponível em: < http://www2.forumseguranca.org.br/node/22086>. Acesso em: 01.Jun.2011.
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